Coronavírus até no esgoto: sem saneamento, favelas têm redução de danos

“Tem um valão aqui que é parte da Baía de Guanabara, lá tem uma ponte. Já presenciei crianças e adultos pulando para que possam se divertir em dias de calor. Há relatos de pessoas que caíram nos valões que são a céu aberto. Eu mesma já caí quando era criança”, diz Leilane de Andrade, 22, moradora do Salsa e Merengue, no Complexo da Maré, Rio de Janeiro.

Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2018, menos da metade (46,3%) do esgoto gerado no Brasil é tratado, realidade que deixa mais de 100 milhões de cidadãos sem acesso ao serviço no país. Os menores índices de tratamento de esgoto estão nas regiões norte e nordeste. Nas duas regiões apenas 21,7 e 36,2% do esgoto produzido são tratados, respectivamente.

O estado do Rio de Janeiro atende 65% (11,2 milhões) de sua população com rede de esgoto, mas trata apenas 31,3% do esgoto gerado. Segundo o Instituto Trata Mais Brasil, em 2018, a cidade do Rio contava com aproximadamente 6 mil pessoas sem acesso a banheiro em casa, 173.203 pessoas não tinham acesso a água e quase 100 mil pessoas não tinham acesso a coleta de esgoto. Em tempos de pandemia saneamento é necessidade urgente.

Brasileiro não é super-herói

“O brasileiro tem que ser estudado, ele não pega nada. Você vê o cara pulando no esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele”, disse Jair Bolsonaro em 26 de março. O presidente da República usou essa fala para embasar a ideia de que o brasileiro é resistente a doenças, por isso o coronavírus não teria sucesso por aqui. Na época da declaração o Brasil contava oficialmente 77 óbitos por covid-19. Hoje, o número de mortos pela doença já passa de 20 mil.

Infelizmente, a realidade é justamente o contrário do que defende ele. Não existe um “fator de cura mutante”, como o do super-herói Wolverine, no corpo dos brasileiros.

Segundo o IBGE, 34,7% dos municípios do país registraram endemias ou epidemias de doenças ligadas ao saneamento, a maior parte dos registros é de dengue, diarreia, verminoses, chikungunya e zica. O alerta global vem da própria Organização Mundial da Saúde (OMS): diarreias são uma das principais causas de mortalidade em crianças menores de um ano, com 1,7 bilhão de casos.

O mal também provoca 525 mil óbitos por ano em crianças menores de cinco anos. A revista Ciência & Saúde divulgou estudo, com base em dados do SUS, mostrando que a diarreia foi responsável por mais de 3,4 milhões de internações e 72 mil mortes no Brasil de 2000 a 2015. É como se a população inteira do Uruguai tivesse sido internado com diarreia nesse período.

Esgoto a céu aberto: onde alguns brasileiros pulam em dias de calor - Leilane de Andrade
Esgoto a céu aberto: onde alguns brasileiros pulam em dias de calor Imagem: Leilane de Andrade

E não fica por aí: no ano passado, os casos de dengue no Brasil chegaram a 1,5 milhões, com mais de 700 mortes segundo Agência Brasil. Isso quer dizer que a dengue matou mais gente no Brasil, em um ano, do que o total de assassinatos ocorridos na Alemanha. Os dados mostram que os brasileiros não estão imunes a nenhum tipo de doença.

Leilane, do Complexo da Maré, conhece essa realidade de perto: “essa falta de saneamento pode causar consequências graves, até a morte, principalmente nas crianças. Doenças como leptospirose são um risco, pois na maior parte das casas já teve infestação de rato. Digo por experiência própria e por saber de conhecidos que relataram a situação.”

Águas de março

No início de março moradores do morro Santa Marta, na Zona Sul do Rio, começaram o jateamento na favela por conta própria. Os materiais foram conseguidos colaborativamente por iniciativa de Thiago Firmino e seu irmão Tendy, ambos moradores do local. Os irmãos, munidos de todos os EPIs (equipamentos de proteção individuais), percorreram a comunidade desinfectando becos, vielas, muros e portões. Durante o jateamento foram utilizados produtos como água sanitária, hipoclorito de sódio e, também, o quaternário de amônio diluído em água — este último é o mesmo produto que foi utilizado na China, sendo capaz de proteger superfícies por muitos meses.

No mesmo período, a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro começou o processo de limpeza em pontos estratégicos onde as condições favorecem a disseminação massiva do coronavírus. Com garis da Comlurb liderando a força tarefa, são utilizados caminhões-pipa, mangueiras, vassouras e pulverizadores. Os produtos utilizados são água, detergente e cloro, que não garantem uma proteção extra, mas são eficientes na higienização pontual de superfícies. Em parceria com as forças armadas ocorreu a desinfecção da Central do Brasil e de estações de BRT, metrô e barcas, utilizando o BX24 (produto à base de cloro utilizado por militares). Segundo a prefeitura, no início de maio, 382 comunidades na cidade já haviam recebido a lavagem com água de reuso e detergente neutro, entre elas, favelas populosas como Complexo do Alemão, Rocinha, Cidade de Deus e Complexo da Maré.

Para Bianca Dieli, do departamento de Planejamento Urbano e Regional da Fiocruz, é preciso estabelecer o diálogo com os moradores das áreas sob limpeza. “A pulverização aqui no Rio está sendo feita mais por essa água de reuso com detergente, né? Que é o que a prefeitura utiliza, mas tem municípios usando esse quaternário de amônio que é um biocida muito mais poderoso. Prefeitura rica usa biocida mais poderoso, que também é mais perigoso. Então é muito importante que a população seja avisada antes, para não estarem na rua naquele momento, não deixarem os animais na rua, e para que as pessoas alérgicas a esse tipo de produto químico tomem cuidado”, alerta.

No Complexo da Maré a higienização também chegou na forma de lavagem e pulverização. Moradores de comunidades como Baixa do Sapateiro, Vila dos Pinheiros, Morro do Timbau, Salsa e Merengue, Bento Ribeiro Dantas, Parque União e Nova Holanda relataram a ocorrência de limpeza nas ruas.

Maria dos Santos Moradora, do Bento Ribeiro Dantas, conta que ficou um pouco assustada. “Na primeira vez que passou aqui na rua, o caminhão jogou uma água meio turva e cheia de espuma, acho que é água de reuso. Entrou água no meu quintal, molhou as roupas no varal e até meus gatos. Na segunda vez foi o barulho da máquina que chamou atenção, mas já sou acostumada pois trabalho com limpeza, também. Inclusive, acho muito importante esse trabalho”, diz ela.

Moradores do Morro do Timbau relataram que pulverização passou pelas ruas principais mas não pelos becos da comunidade, locais que deveriam ser higienizados pois há casos de pessoas infectadas.

O jateamento ajuda a reduzir a circulação de micropartículas, mas eu acho que o saneamento básico, acesso à água e canalização de esgoto, deveria ser a primeira medida. A dengue mostra isso: se eu não resolver as questões de saneamento, o matador que borrifa aquele veneno tem uma ação muito pequena, porque o mosquito vai se reproduzir de novo. O coronavírus é nessa linha

Bianca Dieile, integrante do departamento de Planejamento Urbano e Regional da Fiocruz

Limpeza na Vila dos Pinheiros, Complexo da Maré, Rio - Kamila Camilo
Limpeza na Vila dos Pinheiros, Complexo da Maré, Rio Imagem: Kamila Camilo

Fezes, esgoto e a possibilidade de novas forma de transmissão

Cientistas da China comprovaram a permanência do coronavírus nas fezes de pacientes que já não apresentavam a covid-19 nos aparatos respiratórios e no pulmão. O estudo foi publicado na revista científica The Lancet Gastroenterology & Hepatolgy, e embora não se saiba o potencial de transmissão do novo coronavírus presente nas fezes, os autores indicam que há forte tendência em seguir outros vírus causadores de síndromes respiratórias agudas (Cov) e a síndrome respiratória aguda do oriente (CoV.2), capazes de permanecer e promover a transmissão fecal. A transmissão via fecal-oral ocorre quando alimentos e líquidos que entraram em contato com fezes contaminadas são levados à boca. Na Holanda, pesquisadores detectaram o novo coronavírus em amostras de esgoto no aeroporto de Amsterdã e em estações de tratamento em outras regiões.

No Brasil, pesquisas recentes têm comprovado a existência do novo coronavírus na rede de esgoto de grandes cidades. É o que encontraram estudiosos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) em 31% das amostras de água de sub-bacias dos ribeirões Arrudas e Onça, que recebem despejo de esgoto sem tratamento da região metropolitana mineira. Já no estado do Rio de Janeiro, a Fiocruz identificou a presença do novo coronavírus em amostras do sistema de esgoto da cidade de Niterói.

Em muitos territórios é comum a prática de canalizar o esgoto diretamente para redes de águas pluviais (água da chuva), cuja destinação final ocorre em rios, lagos e mares, o que provoca desequilíbrio ambiental, morte de animais e colapso de ecossistemas. O boletim de saneamento da Casa Fluminense apresenta dados deste cenário: na Região Metropolitana do Rio foram registradas 1.791 internações provocadas pela falta de saneamento, das quais 64% eram de crianças de até quatro anos. Isso apenas em 2017.

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