Um experimento realizado em uma área de 200 m2 cultivada com alface tem comprovado a eficácia de um protótipo de estação de tratamento de esgoto sanitário.
Os pesquisadores obtiveram resultados parciais promissores ao analisar o padrão de qualidade da água residuária a ser utilizada para irrigação das plantas. Trata-se do primeiro passo no processo de validação do modelo de estação de tratamento de esgoto (ETE) de baixo custo proposto por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores da Embrapa Hortaliças (DF), em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).
Os ensaios avaliaram a qualidade da água residuária e estabeleceram comparações com a água proveniente de um córrego das proximidades dos campos experimentais.
“Em todas as parcelas cultivadas com alface, independentemente da fonte da água de irrigação ou do sistema de produção, o resultado foi idêntico: não houve contaminação nem qualquer diferença nos índices de produtividade”, assegura o engenheiro ambiental Carlos Eduardo Pacheco, pesquisador da Embrapa.
Os plantios de alface foram irrigados por gotejamento porque a água residual entra em contato com o solo e não com as folhas, o que minimiza o risco de contaminação.
“Quando se utiliza reúso de efluente tratado para irrigar hortaliças, por uma questão de segurança adicional, não se recomenda a irrigação por aspersão diretamente nas folhas, ainda que o efluente tratado apresente máxima qualidade”, adverte o pesquisador.
Além da verificação das duas fontes de águas para irrigação das alfaces, a pesquisa também testou a qualidade do solo e diferentes tipos de cobertura, sendo: solo nu como base de comparação, plantio direto com milheto, mulching plástico preto, e mulching plástico dupla face. Todos os sistemas apresentaram índices de produtividade semelhantes e plantas com qualidade microbiológica adequada ao consumo.
Não foi detectada em qualquer parcela a presença de coliformes termo tolerantes nas alfaces colhidas, o que seria impedimento para a comercialização das hortaliças. Esse resultado preliminar já atesta a eficiência da qualidade da água gerada pela estação de tratamento.
“No efluente tratado, nós alcançamos 100% de eficiência na remoção de coliformes totais, das bactérias do gênero Salmonella e da Escherichia coli, e de ovos de vermes parasitas como lombrigas e tênias”, afirma Pacheco.
A pesquisadora da Embrapa da área de Ciência e Tecnologia dos Alimentos, Lucimeire Pilon, que realizou as análises microbiológicas das alfaces colhidas, confirma: “não houve contaminação nas folhas por essas bactérias nocivas, e as alfaces mostraram-se seguras para o consumo humano”.
Baixo custo e mais famílias atendidas
De acordo com os pesquisadores, o protótipo em escala real, localizado nos campos experimentais da Embrapa Hortaliças, foi desenvolvido não apenas para possibilitar o reúso do efluente tratado em irrigação de cultivos de hortaliças, mas também para entregar um sistema de tratamento eficiente e de baixo custo que pudesse ser construído com materiais de fácil acesso e adotados por comunidades rurais e povos tradicionais como indígenas e quilombolas que, na maioria das vezes, não são atendidos por serviços de saneamento básico.
A estação de tratamento possui uma configuração compacta e foi dimensionada para dar vazão a um fluxo de efluentes gerado por até 500 pessoas, o que equivale a um volume diário de 50 m3 (50 mil litros), tendo seu custo de implantação estimado em R$ 80 mil.
“O sistema em questão apresenta um custo significativamente inferior aos modelos de tratamento de efluentes individuais, que geralmente atendem somente a uma família. Há a possibilidade de escalonar esse resultado para todas as famílias integrantes de uma comunidade, com a ETE dimensionada de acordo com o número de beneficiários. Ou seja, pode-se atender mais pessoas com um investimento comparativamente menor ao dos sistemas individuais”, analisa Heithel Silva, coordenador técnico do IICA-Brasil, que representa a instituição nessa parceria, juntamente com o agrônomo Rodolfo Daldegan, especialista em Projetos do mesmo instituto.
Com o sucesso dos primeiros resultados do reúso das águas residuais nos plantios de alface, os testes de validação devem ser expandidos ao longo de 2021 com a instalação de estações de tratamento em comunidades rurais do semiárido nordestino. O primeiro município que receberá uma unidade de validação da ETE será Petrolina (PE), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), a Embrapa, o IICA e órgãos públicos municipais.
Inclusão produtiva de comunidades
Como a viabilidade da ETE passa também por uma questão estrutural, uma vez que tem que haver uma rede de captação de esgoto para ser conectada à estação, é fundamental uma articulação entre as instituições de pesquisa, enquanto provedores da tecnologia, e os órgãos públicos para que seja possível a adoção pelas comunidades isoladas.
“Um projeto com esse arranjo promove, além de questões sobre saneamento, tratamento e reutilização do efluente tratado, novos horizontes para a inclusão produtiva dessas comunidades, aliando preceitos que garantem a segurança alimentar e nutricional advinda da diversificação de cultivos que anteriormente não eram passíveis de trabalho devido à escassez de água e contaminação de corpos hídricos próximos”, pondera Heithel.
Parceiros desde a primeira hora, da concepção à implementação da ETE, segundo ele, o IICA compôs um grupo integrado pela Sede Central do Instituto, na Costa Rica, que confirmou o interesse de internacionalizar a tecnologia, não só para a América Latina, mas também para o Caribe, principalmente devido aos resultados promissores e seu impacto positivo para o desenvolvimento do meio rural e respeito ao meio ambiente.
Solução para o saneamento e o déficit hídrico
Os pesquisadores entendem que a oferta de uma estação de tratamento de esgoto (ETE) de baixo custo e de dimensões compactas pode não somente originar uma nova fonte de água para a irrigação de hortaliças em locais em que há escassez hídrica, como também evitar que o esgoto não tratado seja direcionado para corpos d’água e cause contaminação ambiental.
Estatísticas do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS (2018) indicam que pouco mais da metade da população brasileira possui acesso à coleta e ao tratamento adequado de esgoto, sendo que esses índices são bastante dependentes do tratamento ofertado às grandes e médias cidades. Por exemplo, as regiões com maior percentual da população atendida por serviços de tratamento de esgoto são: Sudeste (79,2%), Centro-Oeste (52,9%) e Sul (45,2%). Os índices do Nordeste (28%) e do Norte (10,5%) evidenciam a carência desse serviço nessas regiões.
De acordo com Pacheco, as populações dessas regiões poderiam ser beneficiadas com a implantação do modelo de ETE tanto do ponto de vista da melhoria dos índices de saneamento básico quanto em relação a possibilitar a produção de hortaliças para o enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional.
“Muitas vezes, principalmente no Nordeste, a situação é agravada devido ao déficit hídrico e à restrição para produção e irrigação de hortaliças, alimentos ricos em vitaminais e sais minerais essenciais para uma boa nutrição”, pondera.
Projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) estimam que pode haver uma redução de 30% nos valores de precipitação até o fim deste século. Com exceção do Sul do País, todas as outras regiões devem enfrentar redução nos índices de precipitação média anual até 2100. O Nordeste será a região brasileira mais afetada, com riscos de áreas semiáridas tornarem-se áridas.
“Com isso, delineia-se um cenário em que projetos de tratamento de efluentes para reúso de água residuária na agricultura são fundamentais como ferramenta de adaptação às mudanças climáticas e como fonte alternativa de água para irrigação de plantios”, assinala Pacheco. “Segundo a legislação brasileira, em caso de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos deve ser destinado ao consumo humano e à dessedentação dos animais, o que contempla a pecuária, mas não a agricultura”, continua o pesquisador, reforçando a importância de a pesquisa fornecer subsídios para estruturação de políticas públicas que regulamentem o reúso de efluentes para diversas finalidades, seja agrícola ou industrial.
O cientista discorda da afirmação de que o Brasil é um país rico em água.
“Isso apenas é verdade quando se lê os números totais. Ao estratificar, notamos que nossos recursos hídricos estão mal distribuídos, em termos inversamente proporcionais, visto que a região amazônica detém quase 80% da água doce superficial de todo o País e possui por volta de 20% de nossa população. Já o restante do território brasileiro soma 80% da população para 20% da água disponível”, compara.
O impacto da mudança na distribuição do regime de chuvas ainda não é muito claro para outras regiões como o Norte e o Centro-Oeste, mas os modelos apontam uma tendência de savanização e agravamento do déficit hídrico, indicando que algumas localidades, em especial o Semiárido nordestino, podem vir a apresentar características muito similares a outras áreas do globo com a mesma latitude onde hoje existem desertos como zonas da África, da Oceania e da América do Sul.
ETE: rigor no tratamento e implantação acessível
No processo de idealização do protótipo em escala real da estação de tratamento de efluentes (ETE), os pesquisadores da Embrapa adotaram alguns pré-requisitos para o desenvolvimento do modelo. Procuraram atender às normas editadas pelo Inmetro e pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), utilizar materiais de fácil aquisição, privilegiar uma montagem prática e dispor de um tratamento eficiente, mas de baixo custo, preferencialmente sem uso de energia elétrica, e que resultasse em uma água residual com qualidade comprovada para irrigação de cultivos de hortaliças.
“Conseguimos dimensionar a ETE seguindo todos esses preceitos, inclusive a energia solar fotovoltaica como matriz energética, e os parâmetros estabelecidos pelas legislações mais rigorosas do mundo no que se refere à qualidade do efluente tratado em termos de pH da água, condutividade elétrica e presença de microrganismos causadores de doenças”, afirma Pacheco.
No Brasil, o clima tropical traz ainda uma vantagem para a utilização de águas residuárias porque o calor e alta incidência de radiação ultravioleta aceleram a dinâmica de inativação de microrganismos no solo, como as bactérias do gênero Salmonella e a E. coli que são nocivas à saúde humana. Os efluentes sanitários possuem muita carga orgânica, o que por si só não seria ruim para agricultura porque forneceria nutrientes para o solo. Porém, há uma forte carga de microrganismos prejudiciais que devem ser inativados na água residual para que ela possa ser destinada à irrigação de alimentos, principalmente de espécies vegetais consumidas cruas e que crescem junto ao solo.
No protótipo de ETE configurado pelos pesquisadores, o tratamento do efluente ocorre nos níveis primário, secundário e terciário. Ao todo, são nove tanques, sendo três caixas de concreto e seis tanques de PVC, que desempenham diferentes processos até resultarem no efluente final.
“O tratamento inicia com a remoção de materiais mais densos como areia, terra, gordura, papel higiênico, entre outros, seguida da degradação da matéria orgânica a partir de processos anaeróbicos (sem a presença de oxigênio) pela ação de biomassa microbiana que gera biogás. Na sequência, ocorrem os processos de filtração em quatro etapas para remoção de ovos e cistos de vermes parasitas e, por fim, há a desinfecção por cloro”, explica.
A qualidade da água residual tratada está diretamente relacionada ao cumprimento de todas essas etapas anteriores, visto que isoladamente não é possível atender aos parâmetros de segurança da água. A cloração sozinha pode ser bastante eficaz na eliminação de bactérias e vírus, por exemplo, mas não afetaria parasitas nocivos como lombrigas e tênias, que estariam presentes na água de irrigação.
“O tratamento dos efluentes sanitários foi configurado para entregar um alto nível de qualidade da água tratada, uma vez que a maior parte das hortaliças, como a alface, é sensível à contaminação microbiológica pela água”, comenta Pacheco.
Nas análises realizadas, todos os indicadores ficaram dentro dos parâmetros de qualidade estabelecidos pelas normas e legislações internacionais mais rigorosas como as dos Estados Unidos, Israel, Austrália e União Europeia. Em relação à demanda bioquímica de oxigênio (DBO), o efluente de entrada partiu de 290 mg/L para menos de 3 mg/L após o tratamento, sendo que os padrões determinam valores abaixo de 10 mg/L. As medições da água residual após o tratamento na ETE, incluindo a etapa de cloração, constataram a ausência total de quaisquer microrganismos nocivos, o que atende aos padrões rigorosos de regulamentações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para o reúso agrícola irrestrito.
Parâmetros como turbidez da água e condutividade elétrica também ficaram dentro dos valores aceitáveis para a produção agrícola, inclusive para o cultivo hidropônico, assim como o pH do efluente tratado, que se manteve próximo à neutralidade. De acordo com Pacheco, o pH deve estar na faixa entre 6 e 8, porque um pH abaixo de 6 pode tornar os solos mais ácidos e aumentar suas taxas de alumínio trocável, o que pode ser tóxico às hortaliças. Por outro lado, um pH muito alcalino, acima de 8, causaria imobilização de micronutrientes no solo, comprometendo a nutrição das plantas e a produtividade agrícola.
A batalha dos microrganismos
Outra etapa da pesquisa busca determinar quais microrganismos benéficos podem ser utilizados no sistema para aumentar a eficiência do tratamento, com base no potencial para degradar a matéria orgânica do efluente, que é indicativo da presença de microrganismos nocivos. Para cumprir esse propósito, os cientistas contam com um banco de microrganismos que tiveram seu sequenciamento genético realizado pela bióloga Mariana Fontenelle, pesquisadora da área de Microbiologia do Solo da Embrapa Hortaliças.
A partir desse trabalho, é possível determinar quais são as funções desempenhadas por diferentes microrganismos, inclusive aqueles que atuam como decompositores de matéria orgânica.
“Há fungos, leveduras e bactérias que podem ser utilizados, em conjunto ou isoladamente, nos biorreatores da ETE com a finalidade de reduzir o tempo de tratamento e aumentar sua eficiência da degradação da matéria orgânica do efluente sanitário”, explica a pesquisadora.
Na literatura científica, dados indicam que demora cerca de 90 dias para se alcançar 79% de degradação da matéria orgânica de efluentes sanitários. Os resultados obtidos pelo protótipo de ETE na Embrapa demonstraram que, em um intervalo de 30 dias, 96% da matéria orgânica do efluente já havia sido degradada pelos microrganismos benéficos que foram inoculados nos tanques de tratamento.
Aquaponia e biogás: novas frentes de pesquisa
Embora o projeto tenha como principal objetivo a obtenção de uma água residual de qualidade para irrigação de hortaliças, há outros aspectos que também permeiam os estudos como a adequação dos sistemas de irrigação, os efeitos da água de reúso sobre a qualidade do solo e o potencial de uso do efluente tratado na aquaponia, sistema de cultivo de peixes e de plantas em hidroponia.
“Na próxima etapa, vamos analisar a utilização da água residuária em um sistema de aquaponia, com a criação de tilápias em caixas d’água e de hortaliças em hidroponia, que é o cultivo de plantas sem o uso de solo, com as raízes submersas na água”, planeja Pacheco. Segundo ele, quanto maiores os índices de oxigênio dissolvido, melhor a qualidade do efluente tratado para uso em produção de peixes.
Por isso, a equipe vai acompanhar de perto esse parâmetro, além de testar a eficiência de diferentes materiais como filtros de membrana, ultravioleta e ozonizadores para desinfecção em substituição ao cloro, com o intuito de manter a qualidade do efluente mais apropriada para a criação de peixes.
Os pesquisadores ainda não têm respostas sobre como a água de reúso vai se comportar na produção hidropônica, pois há poucos estudos sobre o tema no mundo e haverá necessidade de propor soluções inéditas.
Em outra frente, a equipe do projeto irá avaliar o sistema como fornecedor de energias renováveis, por exemplo, se o biogás gerado no tratamento anaeróbico (com os microrganismos que degradam matéria orgânica do efluente) têm potencial para geração de gás de cozinha.
Fonte: Embrapa